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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Portugal a Pé - Num Algarve onde as estevas e as pedras vão substituindo as gentes

Portugal a Pé - Num Algarve onde as estevas e as pedras vão substituindo as gentes ( in www.cafeportugal.net )

Vamos encontrar Nuno Ferreira a Sul, no caminho entre Castro Marim e Alcoutim. À beira do Guadiana o jornalista recolhe histórias: de Reformas de miséria, de um rio onde já não se pesca, de territórios tornados desertos humanos. Um périplo com salto de fronteira incluído. Na vizinha Espanha um encontro com um Sancho Pança andaluz.

Nuno Ferreira* | terça-feira, 15 de Fevereiro de 2011

No início de Abril de 2008 a primavera rebentava em esplendor lá para as bandas de Odeleite, a esteva a desabrochar em manchas de flores brancas. A princípio, a caminhada desde Castro Marim fora feita, para meu desconforto, na IC 27.

Apesar da largura das bermas, tudo o que recordo de mais interessante foi a passagem de um ciclista em tronco nú e de uma carrinha amarela de venda de gelados que andava para cima e para baixo da IC. Sempre que me via outra vez, o homem dos gelados acenava e premia a buzina, ele na sua solidão de vendedor cruzando a minha de caminheiro.

Estava literalmente a morrer de fome quando larguei a IC e a toalha azul da Barragem de Odeleite à minha esquerda e meti pelo campo, por Alcaria, em direcção à Foz de Odeleite. Quis o destino que o único restaurante da terra com vista para o pachorrento Guadiana tivesse reaberto naquele dia. Pude almoçar com vista para o rio, para Espanha e para as pequenas hortas dos últimos idosos, entretidos entre as couves e uma paragem de autocarro vizinha do restaurante onde espantavam a passagem do tempo. «Sabe quanto ganho de reforma? Cem euros», contou-me um, menos envergonhado que os restantes, a fazerem que sim com a cabeça, a olharem para o lado, como quem diz: «É assim a vida do pobre». Por perto, encontrei um empreiteiro pouco animado que corroborou a história dos cem euros: «É verdade, esses velhotes vivem com reformas de miséria. E pode escrever que está a falar com o dono de uma empresa de construção falida».

Mais à frente, em Guerreiros do Rio, percebi que da pesca do Guadiana pouco mais restava do que o museu. Acabou tudo com a poluição e as restrições à pesca. «Há para aí quatro ou cinco mas andam sempre preocupados com a polícia marítima», contaram-me. Apesar do tom esverdeado e opaco das águas, acabei por celebrar o irromper súbito da primavera com um mergulho no velho «Odiana» a partir de um pequeno pontão que encontrei ali perto e «vigiado» à distância por uma algarvia de chapéu de palha e bata azulada.

Rumei mais tarde a Alcoutim para encontrar uma povoação e um concelho em luta desesperada contra o deserto humano. «Nós aqui lutamos desesperadamente pela sobrevivência», desabafava o médico e autarca de Alcoutim, Francisco Amaral, cuja freguesia de Pereiro, era então a que menos habitantes detinha por quilómetro quadrado em Portugal. «Só temos estevas e pedras, todos os anos morre gente. Pertencemos a uma região, a do Algarve, que tem concelhos ricos e é considerada rica pela União Europeia mas Alcoutim está entre os dez concelhos mais pobres», desabafava Francisco Amaral.

«Lá no Algarve...», comentava em tom de ironia, «só se fala em golfe mas aqui ainda o que nos vale é a cinegética. Esquecem-se que há clientes da caça com mais poder de compra que alguns golfistas».

Pena que as burocracias e as exigências legislativas não permitisse que a caça do concelho fosse consumida ali. «Para servir uma perdiz ou uma lebre local, tenho de a mandar inspeccionar por um veterinário e gastar milhares de contos num túnel de congelação. O investimento não justifica», comentava Rosária Baptista, do Restaurante de cozinha regional Alcatiã, cujos pratos incluem perdiz à algarvia, lebre com feijão branco, coelho bravo à caçador ou javali estufado: «Acabo por comprar às grandes empresas que importam da Nova Zelândia».

Descartados o turismo e a cinegética, Alcoutim toda ela é passado, quando as barcaças de minério das Minas de São Domingos desciam o Guadiana, o barbo e o muge - chamavam-lhe o 365 por ser comido todo o ano - povoavam o rio e o contrabando aliviava a fome. «Era um contrabando de miséria, uns quilos de tabaco, uns quilos de café. Ai mãe, não me fale disso tão pouco, a gente penava aí...» recordava Fernando, ex-contrabandista. «Às vezes, era para perder tudo».

Um dos últimos pescadores de Alcoutim, Emídio Costa Rica, asseverou-me que os dias de pesca já lá iam: «Pesquei desde pequeno, primeiro em Mértola, onde nasci e depois aqui. Pesquei 20 e tal anos. Agora, o rio está muito acabado devido à poluição. Já não pesco, já trabalhei muito...»

Ainda pedi a Emídio que me deixasse fotografá-lo junto da barcaça que mantinha junto ao rio mas foi um ápice enquanto desapareceu para dentro de casa e me deixou especado à frente da porta fechada. Decidi então pagar um euro ao barqueiro e rumar até à vizinha e fronteira Sanlúcar de Guadiana cansado de tanta melancolia. Acabei no Bar El Pozo onde uma vozearia e garrafas vazias de Cruzcampo invadiam o balcão enquanto um Sancho Pança andaluz observava a transmissão em directo de uma cerimónia no parlamento regional, em Sevilha e gritava: «Ladrones! Paco! Mas un pincho e un tinto de verano!»


(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».

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