ENCONTRARÁS DRAGÕES – Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada
Quando comunicaram a Charles de Foucauld a necessidade de abater o seu cavalo predilecto, o oficial do exército francês exigiu que ao animal fossem prestadas honras fúnebres. Dito e feito. Colocaram o cadáver da besta na fossa correspondente, o enlutado cavaleiro fez a sua apologia, enalteceu as excelentes qualidades equinas e rematou o discurso com uma conclusão escatológica e profética: -Tenho a certeza de que, tendo sido um tão bom cavalo aqui na terra, não poderás deixar de ir para o céu! E é isso, precisamente, o que mais me entristece porque, assim, de certeza que não te voltarei a ver!
A história não confirmou a profecia, não só porque não consta que o cavalo tenha sido recebido no reino dos Céus, mas também porque o Visconde de Foucauld, ao contrário do que o seu mundano passado lhe tinha levado a vaticinar, veio a ser não apenas um exímio fiel cristão, mas também fundador de uma benemérita ordem religiosa, falecido com fama de santidade e, eventualmente, mártir.
Mas não é sobre o Beato Charles de Foucauld que trata o filme «Encontrarás dragões», ainda em exibição em várias salas do nosso país, muito embora a acção que serve de argumento seja também de natureza bélica. Com efeito, o realizador de «A Missão» e de «Killing fields», ao recriar, com engenho e arte, a vida de Josemaria Escrivá, centrou-a no conturbado período da guerra civil espanhola, que o fundador do Opus Dei viveu com especial intensidade, quer quando sofreu, na sua própria carne, as agruras da cruenta perseguição contra a Igreja, quer quando, depois de não poucas vicissitudes, logrou passar para a outra zona. No entanto, a questão política e militar é secundária no guião, centrado nos percursos divergentes do padre católico e de um seu impenitente amigo e ex-colega, em que a recusa inicial da lógica cristã do amor e do perdão se resolve in extremis.
Se é verdade que os pecadores incomodam, os santos incomodam muito mais. As fraquezas evidentes dos nossos semelhantes talvez nos mereçam reparo, mas o vê-las favorece a nossa auto-estima, enquanto a heroicidade das virtudes dos bem-aventurados não só nos envergonha, como denuncia a nossa fé débil, tantas vezes dúbia e vacilante. Há quem tenha tentado superar este doloroso confronto da nossa costumeira tibieza e da exaltada heroicidade dos bem-aventurados, elevando-os a uma outra condição, como se tivessem nascido já predestinados para uma tão excelsa missão que nunca experimentassem as fraquezas de que é capaz o coração humano. Mas não, também os santos, talvez até mais do que o comum dos mortais, sofreram no seu corpo e no espírito todos os combates a que deve fazer frente a natureza humana para corresponder à vocação para a perfeição da caridade, que é o amor. Os santos não foram os que não tiveram que lutar, por terem nascido confirmados no bem, mas os que, mesmo tendo encontrado dragões, interiores e exteriores, os souberam vencer com a ajuda de Deus, estimulada pelo seu constante começar e recomeçar.
É provável que «Encontrarás dragões» não satisfaça alguns devotos de São Josemaria, que acharão que o filme, que não faz a apologia do Opus Dei, apresenta o seu fundador numa desarmante naturalidade e, por isso, aquém da aura mística em que às vezes sonhamos as exemplares vidas dos santos. Como ele próprio referia, via-se apenas e tão só como um pecador que ama Jesus Cristo. Apesar de se sentir «capaz de todos os erros e horrores», como dizia, não desistia do ideal da santidade, não como auto-aperfeiçoamento complacente, mas como resposta ao amor de Deus e da Igreja, que serviu apaixonadamente. E os que o seguem, não seguem a ele, mas a Cristo, como muitos anos antes, as pegadas na neve de um descalço religioso, puseram o jovem Josemaria não no encalço do penitente frade, mas do seu divino Mestre.
É possível também que este filme não agrade aos fiéis seguidores do «príncipe deste mundo». O mundo é complacente com uma Igreja que não censure a sua mundanidade, mas não com os santos que, à imagem e semelhança de Cristo, o venceram. «Daqui resulta», segundo G. K. Chesterton, «o paradoxo da história: cada geração é convertida pelo santo que mais em desacordo com ela está!».
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
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