Reproduzimos com a devida vénia a Homilia proferida pelo Reverendo Padre Gonçalo Portocarrero de Almada por ocasião da Missa de sufrágio de S. M. F. El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real D. Luis Filipe (Monarquia XXI)
A BEM-AVENTURANÇA DO SERVIÇO
Missa de sufrágio de S. M. F. El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real
(Lisboa, Convento de São Vicente de Fora, 1-2-2014)
1. Introdução. «Bem-aventurados sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa» (Mt 5, 12a). Esta é a última bem-aventurança enunciada pelo Senhor no seu Sermão da Montanha, a Carta Magna do Cristianismo, e é porventura a maior bênção de quantas neste programático discurso se referem, porque promete o Céu aos que, por causa da fé, são perseguidos e amaldiçoados.
Não será porventura exagerado transpor esta bem-aventurança para quantos, no serviço à Pátria, sofreram semelhante incompreensão, como foi o caso de Sua Majestade Fidelíssima, El-Rei D. Carlos I, e de Sua Alteza Real o Príncipe Dom Luís Filipe. Ambos padeceram a pior das provações, mas que é também, paradoxalmente, a prova do amor supremo porque, como o Mestre ensinou, «não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13). Aqueles que, efectivamente, num dia como o de hoje, do ano de 1908, tombaram no Terreiro do Paço, dando a vida por Portugal, merecem, por isso, esta piedosa evocação, muito embora nos anime a esperança de que já não precisem dos nossos sufrágios.
O regicídio manchou a História de Portugal e lançou sobre a república uma sombra de sangue ainda não remida, mas a memória das duas vítimas régias é motivo de alento para quantos, como nós, irmanados pela fé cristã e o amor a Portugal, agora nos reunimos à volta do altar desta belíssima Igreja de São Vicente de Fora, junto ao Panteão Real. Sirva pois esta celebração eucarística para dar graças a Deus por todos os seus dons e pedir perdão pelos nossos pecados e também pelos daqueles que foram autores do assassinato do penúltimo Rei de Portugal e do Príncipe Real.
«Procurai o Senhor, […] procurai a justiça», lia-se no trecho do profeta Sofonias, há instantes proclamado. Muito embora a justiça humana não tenha sabido reparar o hediondo crime de que foram vítimas o Senhor Dom Vasco Gama Carlos e o Senhor Dom Ana Luis da Silva Filipe, a justiça divina decerto que já premiou os inocentes. Não nos compete, mais de um século depois, ajuizar a responsabilidade dos diversos intervenientes nesse acontecimento. Também não nos cumpre clamar por vingança, sentimento de todo alheio à caridade cristã. Pelo contrário, é nosso dever rezar por todos os fiéis defuntos, inocentes ou culpados, vítimas ou malfeitores, pobres ou ricos, nobres ou plebeus, porque todos, quaisquer que sejam as suas circunstâncias pessoais, devem ser, se ainda estão a caminho da sua definitiva morada na casa do Pai (cfr. Jo 14, 2), destinatários dos nossos sufrágios.
É de justiça que se associe a esta homenagem a D. Carlos I e ao Príncipe D. Luís Filipe, a Rainha D. Amélia e El-Rei D. Manuel II, vítimas sobreviventes do criminoso acto, o qual, embora poupando as suas vidas, os privou, respectivamente, do seu augusto cônjuge e filho, e do seu dilecto pai e irmão.
2. Cumprimentos vários. Antes de prosseguir com o texto proposto para a liturgia da palavra desta celebração vespertina do IV Domingo do Tempo Comum, tenho o dever de saudar muito especialmente Suas Altezas Reais os Senhores Duques de Maria Gabriela Bragança, na sua condição de Chefes da Casa Real portuguesa e, portanto, representantes não apenas das pessoas reais pelas quais, em especial, se celebra esta Santa Missa, mas também de todos os seus antecessores no trono lusitano.
O Senhor Dom Duarte e a Senhora Dona Isabel são hoje um excelente exemplo das ancestrais e nobilíssimas tradições cristãs da Coroa que, por esse motivo, mereceu chamar-se, sem jactância, fidelíssima. Suas Altezas Reais são um modelo não apenas para quantos se revêem no ideal monárquico, mas também para todos os patriotas que desejam, na chefia do Estado português, um exemplo de verdadeiro humanismo cristão.
Em tempos em que as instituições políticas e a própria democracia sofrem um imenso desgaste, mais necessário é que, quem ocupa a cúspide da organização política da nação, seja, mais pelas obras do que pelas palavras, uma irrepreensível referência ética e um exemplo de independência em relação a todas as forças políticas e interesses económicos. Alguém que seja, tão-só, Portugal. Não pode lograr esta abrangência quem se identifica com uma tendência partidária, nem tão pouco quem, pelo particularismo da sua ideologia, não pode abarcar todo o espectro da realidade nacional. Só se identifica com Portugal quem, ao significar a sua história, está em condições de encarnar a sua tradição cosmopolita e multirracial, a sua fé intrépida e tolerante e a sua ânsia de novos impérios. Só quem tem essa legitimidade histórica pode ser símbolo da identidade pátria e, enquanto tal, elemento de coesão e unidade nacional.
Uma palavra ainda para referir a gratidão que devo ao Senhor Presidente da Real Associação de Lisboa, que teve a imensa gentileza de me convidar para presidir a esta celebração eucarística. Mesmo depois de eu lhe ter feito ver, sem falsa modéstia, a inconveniência da minha pessoa para tão honrosa missão, insistiu e reiterou o seu pedido, em termos que nunca esquecerei e que procurarei retribuir com a minha oração e amizade pessoal.
Também se quiseram associar a esta vigília de oração a Causa Real, a Juventude Monárquica, o Instituto da Nobreza Portuguesa, a Associação da Nobreza Histórica de Portugal, as Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e de Santa Isabel, e as pontifícias Ordens militares ierosolomitanas de Malta e do Santo Sepulcro. A todas estas veneráveis instituições apresento os meus cumprimentos, pedindo aos seus membros que me tenham presente nas suas orações.
Por último, saúdo os restantes fiéis que se dignaram participar nesta solene Eucaristia vespertina dominical, a todos pedindo também a esmola de uma lembrança nas suas preces.
3. O convite à humildade cristã. «Procurai o Senhor vós todos, os humildes da terra, que obedeceis aos seus mandamentos. Procurai a justiça, procurai a humildade […]. Só deixarei ficar no meio de ti um povo pobre e humilde» – advertia o profeta Sofonias, no trecho bíblico que foi agora recordado. Em termos análogos, leram-se depois as palavras de São Paulo aos cristãos de Corinto: «Vede quem sois vós, os que Deus chamou: não há muitos sábios, naturalmente falando, nem muitos influentes, nem muitos bem-nascidos», ou nobres, para depois concluir que Deus «escolheu o que é vil e desprezível, o que nada vale aos lhos do mundo, para reduzir a nada aquilo que vale, a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus».
Um tão forte e insistente chamamento à humildade poderia eventualmente comprometer a razão de ser desta homenagem a duas pessoas reais, aqui já referidas pelos tratamentos que são próprios da sua augusta condição. Com a mesma deferência, foram também citados os que hoje tão dignamente representam a dinastia de Portugal. Mas – poder-se-ia questionar – tais honras e tratamentos cerimoniosos não serão incompatíveis com a humildade, a que tanto o profeta Sofonias como o apóstolo Paulo, a todos os cristãos exigem?! Fazem sentido, na casa de Deus, essas proeminências, quando o Senhor prefere aqueles que nada são, em vez dos sábios, dos poderosos e dos nobres?! Não haverá, neste modo formal de tratar aqueles que agora pretendemos sufragar e os seus representantes, uma cedência à mundanidade, em desprezo da autenticidade evangélica, tão patente na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo?!
É verdade que o chamamento à humildade é para todos na Igreja e que a condição cristã é avessa a qualquer subversão da igual dignidade de todos os filhos de Deus. Com efeito, qualquer que seja a inteligência, sabedoria, poder ou estatuto social do fiel, mais importante é, sem dúvida, a graça da filiação divina, que ultrapassa qualquer outra filiação social ou ideológica: em Cristo, todos os que receberam a graça do Santo Baptismo, são irmãos, porque filhos de Deus.
Contudo, pecaria por ingenuidade quem pensasse que esta igualdade na comum dignidade cristã implica um artificial nivelamento social, porque até a própria Igreja, querida e fundada por Cristo como sacramento universal de salvação, é, essencialmente, hierárquica. De modo semelhante, também a sociedade civil reconhece as primazias que são devidas ao poder, ao mérito da ciência e da linhagem, sem que um tal reconhecimento fáctico desvirtue a essencial fraternidade de todos os cristãos na fé e na comunhão eclesial.
É verdade que de nada serve o poder, a sabedoria humana, a influência terrena ou a origem ilustre, se estas realidades terrenas não forem vivificadas pela graça de Deus. Mas também é certo que aqueles que foram escolhidos por Deus para serem seus discípulos, não tiveram por isso que abandonar a sua identidade própria, mas integrá-la na realidade da sua condição cristã. Simão, que deixou este nome para se chamar Pedro, continuou no entanto a ser apelidado filho de João e, como tal, é geralmente referido, porque essa nota genealógica é parte da sua identidade; de modo semelhante, também os filhos de Zebedeu são com frequência nomeados em função dessa sua comum filiação, que é igualmente característica da sua personalidade.
Sobre este particular, como em todos os outros que respeitam à fé, não poderia ser mais expressivo o exemplo do nosso Mestre e Senhor. Se é verdade que, segundo São Mateus, se dá a Si mesmo como exemplo de modéstia, não o é menos que nunca nega a sua especial dignidade. De facto, afirma a sua mansidão e humildade de coração, que a todos propõe como condição necessária para a perfeição da caridade. Mais ainda, já na iminência da sua paixão e morte, lava os pés aos seus discípulos, incluídos também os do traidor. Mas, depois de retomadas as suas vestes, esclarece que aquele seu gesto de modo algum implica renúncia à sua dignidade ímpar, nem aos predicamentos sociais que, em consequência, Lhe eram e são devidos: «Chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem porque o sou» (Jo 13, 13).
Mesmo diante do governador romano, Jesus de Nazaré não se inibe de afirmar a sua condição régia, apesar de saber que, como de facto aconteceu, a mesma poderia ser usada contra Ele naquele iníquo processo. Com efeito, Pôncio Pilatos, na sua qualidade de procurador do imperador romano, poderia entender que uma tal afirmação punha em causa o poder da potência ocupante e, assim sendo, mereceria exemplar punição. Por providente ironia do destino, até no alto da cruz constou, em várias línguas, o título real de Nosso Senhor, porque aí se escreveu: Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus.
4. A utopia igualitária e a hierarquia da Igreja e do Estado. Não há talvez utopia mais perigosa e injusta do que a de uma total e absoluta igualdade social. Foi em nome desse ideal que se firmaram as piores tiranias que, diga-se de passagem, nunca lograram esse irrealizável propósito e deram, até, lugar a realidades sociais profundamente injustas e desiguais. Como alguém disse, com fina e certeira ironia, nessas sociedades, pretensamente igualitárias, todos eram formalmente iguais, mas havia alguns cidadãos mais iguais do que os outros…
A Igreja é, por vontade expressa do seu divino Fundador, hierárquica, na igualdade em dignidade, mas não funcional, de todos os fiéis. A sociedade civil está também estratificada e, não obstante a igualdade dos cidadãos ante a lei, não pode ignorar, qualquer que seja o regime, a natural distinção entre os seus indivíduos.
O que distingue a monarquia humanista cristã não é tanto o seu carácter estamental, comum a qualquer estrutura societária, mas a sua razão de serviço, porque é uma estrutura social inspirada naquele que, sendo Senhor de Senhores e Rei de Reis, disse de Si mesmo que não tinha vindo a este mundo para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela salvação do mundo.
Esta razão de serviço preside a toda a existência dos monarcas, sobretudo se são cristãos, porque a magistratura que exercem se confunde com a sua própria vida. Pelo contrário, nos sistemas em que a prestação do chefe de Estado é ocasional e, portanto, cessa quando concluído o respectivo mandato, regressando então o respectivo titular à privacidade do cidadão comum. Os soberanos, pelo contrário, exercem um verdadeiro sacerdócio do serviço público, que lhes exige uma dedicação plena e exclusiva que, por vezes, acarreta, como no caso de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real, o sacrifício da própria vida.
5. O respeito pelos mais velhos e pelos doentes. Não é do âmbito desta reflexão aprofundar todos as virtualidades da instituição monárquica, mas talvez não seja descabido sublinhar, à imagem e semelhança das celebrações desta efeméride em anos anteriores, alguns aspectos mais marcantes do carácter humanista e cristão que é timbre da realeza portuguesa.
Em tempos em que a vida humana é tão desrespeitada, quer embrionária, ainda no ventre materno, quer também no ocaso da sua etapa terrena, vem a propósito recordar que a história da monarquia oferece alguns exemplos de grande respeito pela dignidade da existência humana.
Na sociedade pragmática e hedonista contemporânea, a vida humana é muitas vezes calibrada em função do prazer que proporciona, do bem-estar que consente, da saúde física ou psíquica de que se goza ou, até, da capacidade produtiva ou da rentabilidade económica do sujeito. Dir-se-ia que a vida humana não vale por si mesma, mas apenas enquanto proporciona uma existência agradável e útil, sendo portanto desprezível quando embrionária, deficitária no seu exercício ou ineficiente, nomeadamente por velhice, ou doença que turve o entendimento e debilite a vontade.
A história da monarquia portuguesa é gloriosa mas, por ser humana, conhece também ocasiões de alguma tensão. Não será de estranhar, portanto, que nos anais da Casa Real, aliás como na própria história bíblica, se assista por vezes a lutas fratricidas, mais por excepção do que por regra.
Foi numa situação desta natureza que El-Rei D. Afonso III destronou o seu irmão, D. Sancho II, como foi também numa circunstância análoga que, muito mais tarde, D. Pedro II interditou e prendeu seu irmão, D. Afonso VI, a quem veio a suceder no trono. Não interessa a esta reflexão o mérito ou demérito dessas deposições, no primeiro caso justificada por bula papal e, no segundo, confirmada em Cortes, mas sim assinalar que, em ambos os casos, os monarcas destronados não foram privados da sua dignidade real, que os que os venceram pela força só assumiram depois da sua morte. O respeito pelas augustas pessoas dos seus antecessores no trono permaneceu até à hora da morte destes, mesmo tendo-lhes sido previamente retirado todo o poder.
É também exemplar o caso da Rainha D. Maria I que, no final da sua vida, ficou incapaz de assegurar efectivamente a governação do reino unido de Portugal e Brasil, sem esquecer os restantes domínios ultramarinos da Coroa. Na comprovada impossibilidade de assegurar o exercício da realeza e dado o carácter incurável dessa penosa limitação, assumiu a regência do reino o seu filho varão primogénito, que viria a ser seu sucessor. No entanto, a sua augusta mãe, mesmo privada de todas as funções reais, manteve-se Rainha de Portugal até à sua morte, em 1816. Só por seu óbito o até então Príncipe Regente passou a ser El-Rei D. João VI, de quem é representante o actual Chefe da Casa Real portuguesa, que descende por via paterna e materna desse ilustre monarca.
Certamente, não é imperativo que quem é constituído na mais alta responsabilidade do Estado, ou da Igreja, permaneça em funções até ao seu último alento. Papas e Reis entenderam por vezes, muito legitimamente, a conveniência da sua renúncia ou abdicação, por razões de ordem pessoal que são compreensíveis numa lógica de disponibilidade e de serviço ao bem comum. Não só os que o fizeram de motu próprio conservaram, por regra, a correspondente dignidade, que lhes foi sempre reconhecida, mas tal também aconteceu com os que foram destituídos contra a sua vontade, mantendo contudo até à sua morte o tratamento régio a que tinham direito. Este respeito pela pessoa e pela sua dignidade, quaisquer que sejam as suas competências funcionais, é expressivo desse humanismo cristão que agora, mais do que nunca, importa exaltar.
6. Conclusão. Regressemos ao Sermão da Montanha, para de novo escutar o Mestre, que nos diz: «Bem-aventurados sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa» (Mt 5, 12a)». Não será talvez descabido supor que o vate do império, que foi nosso e que se desfez, teve presente este ensinamento, quando assim escreveu na sua Mensagem: «Foi com desgraça e com vileza / que Deus ao Christo definiu: / Assim o oppoz à Natureza / E Filho o ungiu».
Sob o estandarte de São Nuno de Santa Maria, renovemos o propósito de servir a Pátria no fiel cumprimento das bem-aventuranças, verdadeiro código de honra dos cavaleiros e damas cristãos. Que o Santo Condestável, cujo sangue corre também nas veias do Chefe da nossa Casa Real, nos obtenha a graça de servir Portugal com o testemunho da nossa vida cristã, e nos confirme na opção evangélica pelos mais pobres e necessitados dos nossos irmãos. Que Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, nossa Rainha e Padroeira, proteja a Família Real, abençoe todas as famílias de Portugal e apresse a tão desejada hora do triunfo do seu Imaculado Coração!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
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